Woody Allen: Na Sala de Roteiristas com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa
- Leonardo Campos
- 29 de jul. de 2024
- 7 min de leitura
Um relato de experiência com uma das obras-primas do cinema de Woody Allen.

A análise fílmica é um mecanismo obrigatório para quem deseja ser um bom cineasta, roteirista ou produtor audiovisual. Na experiência docente no componente curricular intitulado Argumento e Roteiro, ministrado ao longo de alguns anos numa faculdade privada em Salvador, capital da Bahia, os estudantes tinham como missão, assistir aos filmes indicados no plano de ensino entregue no primeiro dia de aula, tendo em vista já permitir que um cronograma fosse estabelecido neste contato inicial com o documento que define as diretrizes de ensino-aprendizagem propostas durante todo o semestre. Alguns mais ansiosos querem apenas escrever, sem antes refletir teoricamente os conteúdos importantes para maior embasamento. Outros já se entregam ao longo caminho de filmes exibidos em sala de aula ou assistidos como estudo dirigido em seus respectivos domicílios, cientes da importância do processo metalinguístico como parte fundamental da aprendizagem a se concretizar, neste caso, a estrutura, o funcionamento e a execução de um roteiro.
O processo mencionado é o estudo da Teoria do Drama, juntamente com alguns Manuais de Roteiro considerados clássicos, tais como as publicações de Syd Field, reinterpretados por documentários e estudos acadêmicos que os resgatam para aproveitar o que ainda é viável na produção cultural contemporânea e o que se tornou muleta de narrativas que se repetem constantemente na indústria. Estudar argumento, roteiro e diálogos, nesta perspectiva, é também refletir criticamente alguns processos produtivos. E Woody Allen é o cineasta que não pode ficar de fora deste esquema, ao menos dentro do meu ponto de vista pessoal não apenas como professor e crítico de cinema, mas como formador de novos profissionais devidamente habilitados para as demandas de mercado no campo do cinema. No final do processo dessa sequência didática, pretende-se que os estudantes compreendam as estratégias de elaboração dos conflitos dramáticos e personagens de um roteiro para cinema e talvez, algum outro produto audiovisual ficcional que surja como oportunidade de trabalho.
Em Argumento e Roteiro, o realizador que trabalha ao longo de várias décadas entre o cômico e o dramático é contemplado em dois momentos específicos. Primeiro na seara das concepções clássicas de tragédia e comédia, oriundas dos textos vinculados ao legado de Aristóteles e sua Poética, ilustrados em Melinda e Melinda. No filme, o cineasta nos apresenta a trajetória de Melinda (Radha Mitchell), personagem observada sob duas circunstâncias: a trágica e a cômica. É a mesma história, contada pelo viés do humor e da desgraça, exercício de manipulação da linguagem cinematográfica, algo que vai além do entretenimento graças ao traquejo de Woody Allen na condução enquanto diretor que assume o próprio texto. Outro momento onde a sua presença se faz importante é na aula com debates sobre a construção de diálogos e o desenvolvimento de personagens. É a ocasião de trabalharmos com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, tendo em vista observar numa narrativa pronta, os elementos de composição das bases de um filme, isto é, o conflito central da história e como os personagens se desenvolver. Analisar e interpretar são os verbos no infinitivo que guiam a aula programada para a análise fílmica em questão.
Lançado em 1977, algo que de início causa desinteressante nas gerações mais recentes, mesmo sendo indivíduos mergulhados na arena das artes, circunstância que geralmente denota a presença de pessoas despidas de determinados preconceitos aos chamados “filmes muito antigos”, a comédia filosófica de Woody Allen consegue manter um diálogo interessante, desde o roteiro e a concepção dos personagens ao esquema de ambientação do design de produção de Mel Bourne e a acertada direção de fotografia de Gordon Willis, contemplados pelo ritmo da edição assinada por Ralph Rosenblum, responsável por tornar tudo que já é eficiente em algo atrativo também na seara do desenvolvimento narrativo. Antes de organizar os objetivos da exibição comentada, seguida de debate com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, torna-se relevante destacar que Woody Allen dividiu o texto com Marshall Brickman, além de ressaltar, mais uma vez dentre as anteriores, que o roteiro contemplado na versão final exibida ao público geralmente passa por alterações durante a realização, o que nos permite problematizar tópicos que são tratados em debates futuros do componente curricular: o quanto a versão final exibida nos cinemas tem do roteiro base?
Por não ser uma preocupação da aula em questão, o tópico fica suspenso para reflexão de cada um, destrinchada noutra ocasião propicia para que o debate em torno dos conflitos e personagens de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa não se dispersem. O que adianto sempre é que no caso de Woody Allen, por ter em mãos o roteiro que ele mesmo concebeu, as transformações ficam menos próximas dos famosos acirramentos entre dramaturgos e cineastas, geralmente em guerra quando um diretor é acusado de deturpar a ideia basilar de um texto dramático, situação corriqueira dentro do esquema de produção em escala industrial, envolvido nas teias de produtores, patrocinadores e outros donos de uma obra que não é mais única, mas múltipla em termos de autoria. É um tentador e rizomático debate sobre Ética, também integrante do curso de Cinema e Vídeo, além de ilustração cabal de situações para a aplicação dos métodos ativos da Aprendizagem Baseada em Problemas no contexto de simulação noutro componente curricular intrigante: a Direção de Cinema.
Voltemos, no entanto, da panorâmica visualização de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa dentro da graduação para estudantes de cinema. O nosso foco aqui é Argumento e Roteiro. Com os lembretes devidamente anotados, é hora de desenvolver uma esquematização para recontar criticamente a história que será trabalhada. No filme, temos Alvy Singer (Woody Allen), um humorista judeu que após dois divórcios, busca reencontrar-se em novo relacionamento. O problema é que as suas complicações tornam tudo muito mais difícil do que já é. Imagina se Singer fosse um personagem da era líquida dos aplicativos e redes sociais? Para a situação ficar ainda mais tortuosa, em sua jornada que envolve a análise com um terapeuta há quase quinze anos, o personagem conhece Annie Hall (Diane Keaton). Apaixona-se, mas a moça é alvo de suas inseguranças e fobias, relacionamento que não parece encontrar eco na posteridade. A cantora em começo de carreira também é cheia de incertezas, perdida diante das indecisões sobre sua vida.
Quando eles decidem morar juntos, tudo fica ainda mais complexo de lidar. Ele reclama de tudo, aponta defeitos na moça, projeta as suas neuroses na relação e demonstra para o espectador que não consegue ser um homem crente na possibilidade de ser feliz. Essa exibição verborrágica de neuroses ganha maior projeção quando ele quebra a quarta parede e conversa, tal como Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, com o seu público. Talvez seja por isso que o cineasta se diz tão apaixonado pelo romancista brasileiro. Este é um filme de Woody Allen onde a linguagem é trabalhada de maneira transgressora, repleta de digressões, inserção de animações, legendas para determinadas passagens, num estilo que seria uma espécie de vanguarda para comédias românticas futuras, tais como 500 Dias Com Ela e similares. O filme também antecipa a relação entre personagens e contextos urbanos, abordagens de sucesso em Friends e Sex and The City.
O cenário para o amor entre o casal é igualmente complexo. São os anos 1970, era de mudanças políticas e sociais que refletiam sacolejos da década anterior, pautada em movimentos estudantis, relações geopolíticas em pé de uma nova guerra com dimensões mundiais e outras tantas incertezas. Eles são tensos a ponto de perderem a espontaneidade na hora do primeiro beijo, algo calculado e transformado em reflexão, em vez de ação motivada pelo desejo pulsante. Annie Hall foge dos padrões com seus trajes cuidadosamente assinados pelo setor de figurinos de Ruth Morley, responsável por trazer uma mulher vestida com ternos, gravatas, peças largas, algo que na cultura padronizada, ainda são peças associadas ao público masculino. Ela é graciosa, divertida, repleta de neuroses que ampliam ainda mais a nossa análise do personagem de Woody Allen. Sendo a personagem título, a presença de Annie em cena nos permite contemplar a angustiante jornada de Alvy Singer, um homem acometido pela anedonia, isto é, a incapacidade de sentir qualquer prazer na vida, constantemente insatisfeito e infeliz, um existencialista aos extremos.
É com Alvy que conseguimos elaborar um panorama de necessidades dramáticas e perfis de personagem para análise. De acordo com os manuais tradicionais, todo personagem precisa ter o seu perfil físico, social e psicológico delineado no texto. Mesmo com as mudanças no estilo de narrativas na era das transformações dos formatos ficcionais, encontramos na produção dramática contemporânea a inserção destas modalidades dramáticas clássicas. Elas não precisam de apresentação explicita, mas estão em consonância na evolução ou estandardização do personagem no desenvolvimento de um roteiro. Na seara física, Alvy é magro, baixo, branco, calvo e usa óculos que transmitem a sensação estereotipada de um nerd apaixonado por filosofia. O pensamento é algo tão fluente que ele reflete sobre tudo que faz em sua vida, alguém que não descansa do academicismo até para ir na esquina. É a sua dimensão psicológica exaltada pelo roteiro que critica a cultura acadêmica da época, um alvo sempre presente também em outros filmes do cineasta. Na seara social, ele é um humorista, paradoxo da sua personalidade ranzinza, algo que entra em conflito com os acontecimentos de seu cotidiano, extremos demais para alguém que não sabe lidar com coisas que saiam de sua zona de conforto.
No geral, em sua breve, mas memorável relação com Annie Hall, Alvy não goza dos privilégios da vida. A fala pode até caminhar para uma interpretação sexual, mas também passa por isso.
Ele não ri de sua própria condição, apenas reclama. Analisa demais as coisas, angustiado sempre em busca de imperfeições. Diante do exposto, mesmo que a aula seja um acontecimento com suas prováveis mudanças de rumo, o trajeto inicial geralmente é respeitado quando docente, discentes e ferramentas de estudo estão alinhadas com os pontos nevrálgicos do planejamento, neste caso, os elementos pontuais do roteiro cinematográfico, em especial, o desenvolvimento de personagens e a estrutura geral da narrativa no filme em questão, selecionado para análise, produção ganhadora do Oscar nas categorias de Melhor Filme, Diretor, Atriz e Roteiro Original. Ademais, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa foi lançado em 20 de abril de 1977 e tornou Woody Allen ainda mais firme do que já estava em sua caminhada enquanto cineasta. Era a prévia de outras fases dramáticas, inserções metalinguísticas no cinema de Bergman, mergulho em clássicos literários, dentre outras peculiaridades de sua cinematografia. Agora, depois de traçados os detalhes, chegou a hora da aula. Desejem-me sorte! A próxima explanação é sobre uma experiência com Woody Allen e A Era do Rádio no componente curricular Oficina de Radiojornalismo. Nos encontramos lá, combinado?
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