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Segunda Chamada e Suas Reflexões Sobre a Educação de Jovens e Adultos

Em suas duas temporadas, a série do Globoplay inspirada em Conselho de Classe, de Jô Bilac, apresenta excelentes reflexões sobre a Educação de Jovens e Adultos na atualidade.


Segunda Chamada série para reflexões sobre a Educação de Jovens e Adultos
Fonte: Globoplay

Premiada e com montagem de repercussão tímida quando comparada à dimensão alcançada pela série televisiva inspirada em seu conteúdo, isto é, a primeira temporada de Segunda Chamada, exibida nos meses finais de 2019, a peça teatral Conselho de Classe é um texto composto por diversos momentos brilhantes e únicos. Após a sua leitura completa, a passagem mais emblemática é uma das mais comentadas pela crítica das pessoas que tiveram acesso ao material. O trecho diz o seguinte: “só há duas opções nesta vida, se resignar ou se indignar, por isso, eu não vou me resignar”. Em linhas gerais, e com a minha adaptação em sua abordagem, o trecho é o fio condutor do texto de Jô Bilac, uma peça que trata da crise na educação brasileira, um tema que não é nenhuma novidade, mas que ganhou no desenvolvimento do autor, uma embalagem atualizada e pertinente para um de nossos maiores problemas enquanto nação.

 

Importante para o conhecimento da obra é saber também quem é o seu autor. Jô Bilac, nome artístico para Giovani Ronaldo Bilac possui experiência considerável em atividades teatrais, além de muitos prêmios pela autoria de suas peças, em suma, um dramaturgo contemporâneo respeitado pela responsabilidade social de suas obras, bem como pela qualidade dramática dos textos, material que ultrapassa a nossa urgente crítica social e se estabelece como arte de primeira linha. São discussões constantemente alegóricas, com traços que nos remetem aos melhores dramaturgos da nossa história teatral. Conselho de Classe, por exemplo, é um desses seus ótimos textos, com tratamento leve e crítico para uma situação extremamente pesada: o descaso estatal e a falta de perspectiva com a educação brasileira. 


Curador do Teatro Sérgio Porto (2006-2007), Jô Bilac também exerceu funções similares no Teatro Glauco Gil (2008-2010) e no Teatro Maria Clara Machado (2010-2012), ambientes de trabalho onde desenvolveu muito do que aprendeu em sua formação na Escola de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro. Sua visão acerca do exercício artístico é bem apaixonada, combustível para o desenvolvimento de um trabalho que infelizmente não é devidamente respeitado em território brasileiro, principalmente em nosso assustador “contemporâneo”, momento em que parecemos viver na “terra de ninguém”. Para Bilac, “o teatro é cada vez mais o espaço onde podemos rever a nossa própria história e nossa condição humana”, reflexão complementada com a ideia de que “esse paradoxo entre vida e morte” é o que “me move muito”. Palavras do autor, expressões que ganham eco em Conselho de Classe, sua peça de maior sucesso. 

 

Depois de exercer funções no canal GNT, Jô Bilac partiu para o segmento mainstream da ficção televisiva brasileira, a Rede Globo, espaço de alienação e jornalismo questionável, mas uma emissora que também possui uma pequena parcela de responsabilidade social com suas produções, em especial, as séries que funcionam como entretenimento de alta qualidade estética, conteúdos acompanhados por discussões sociais de importância. O autor faz parte deste setor, haja vista a excelente contribuição que deve fornecer em sua função de roteirista, além de ter entregado um material de primeira linha para a emissora desenvolver a excepcional Segunda Chamada, série que teve como base a peça teatral em questão. 


Mas, afinal, do que se trata exatamente a peça? De maneira geral, o drama se desenvolve num conselho de classe, realizado numa escola intitulada Dias Gomes, referencia ao dramaturgo conhecido por “clássicos”, tais como O Bem-Amado e O Pagador de Promessas. Tudo começa com um conflito entre a diretora da escola e alguns estudantes. No tal conselho, estamos diante do momento dos professores abrirem possibilidades de debate sobre questões individuais de cada aluno, situação onde geralmente também são colocadas em perspectiva, as situações mais conflituosas da instituição de ensino, da estrutura ao processo burocrático que rege as relações dentro desses espaços de gravitação da fome, da violência e de outros tópicos da miséria social que atinge em cheio os alunos, professores e demais membros da estrutura educacional.


Interessante observar que as professoras com maior “presença” em cena são de fato os personagens sociais da dinâmica escolar com menor índice de expressão, ao menos nos conselhos de classe que participei, afinal, reflito com vocês, caros leitores, tendo a minha experiencia de docente experiente em todas as esferas da educação como parte da afirmação do potencial dos diálogos e dos tópicos temáticos desta peça. Quem, afinal, nunca ouviu coisas do tipo “educação física não reprova”, “inglês não reprova”, “o que reprova mesmo é matemática, artes não faz diferença alguma”, etc.? Se alguém no âmbito educacional teve a sorte de nunca ouvir aberrações do tipo, pode se considerar uma pessoa de sorte. Assim, ao longo de Conselho de Classe, o autor coloca duas professoras como ponto nevrálgico do texto, uma de Artes e a outra de Educação Física, os tais componentes curriculares considerados “menores” por muitos.


Mabel é uma das professoras que mais se importa com os seus alunos. Ela é a professora de Artes. Seu ideal é libertário, proveniente de uma educação que pensa além dos muros da escola. Edilamar é o seu eixo de contraste. É a professora que busca na Educação Física os corpos dóceis, enrijecidos pela ordem reta, sem chance de qualquer manifestação libertária. O seu regime é militar, seco, direto e de uma objetividade hedionda. Daí, a peça se estabelece entre o conservadorismo de uma e o tom libertário da outra. Espécie de ordem versus rebeldia. Interessante mesmo é observar a sutiliza do texto de Jô, sem apelação para dualismos rigidamente postos em cena, isto é, não há nada de “bem” e “mal” na condução destas personagens, apenas reflexões que são expostas, oriundas de pontos de vista diferentes e que podem chegar num consenso, caso isso fosse de fato possível.


Em seu desenvolvimento, Conselho de Classe trata do fracasso na educação brasileira, sem deixar de tocar em temas tangentes, tais como a inversão de valores que nos acompanha diariamente, a falta de verba área para exercício do mínimo, dentre outros assuntos. Paloma e Célia são outras duas personagens que estabelecem um paralelo interessante na discussão que se propõe. Enquanto a primeira está conectada com a escola, a outra parece um alienígena diante do espaço de trabalho. O diretor que chega para substituir a diretora anterior, machucada durante a manifestação dos estudantes, é um desses profissionais formados apenas com o pensamento acadêmico, cheio de teorias que não consegue colocar em prática. Colocado em cena para representar a “burocracia”, ele quer exercer a sua função vertical, algo muito comum nos ambientes de trabalho, isto é, pressionar quem está embaixo, haja vista as cobranças que vem lá de cima, do poder público, interessado em números e documentos que nem sempre comprovam as agruras da realidade, num caminho por onde todos trafegam diante das aparências, algo que nem de longe é bonito de se ver.


Ademais, ao longo das 96 páginas da edição disponibilizada pela Editora Cobogó, acompanhamos um texto que tal como exposto, aposta no tom humorado para tratar de um tema extremamente sério, sem perder nem um pouco a urgência dos tópicos debatidos. A escola é apresentada como espelho das nossas relações sociais e o que é visto diante de tal reflexão não tem nada de belo, ao contrário, é uma superfície trincada pelo grotesco da falta de perspectiva, de investimentos financeiros, dentre outros traços que compõem o horror da nossa existência numa sociedade regida pela monstruosa desigualdade. Produzida num contexto social efervescente, haja vista a greve geral de professores em vários pontos do Brasil, bem como as manifestações referentes ao aumento das tarifas de ônibus, conhecidas como Jornadas de Junho, Conselho de Classe é uma peça que diante da nossa realidade, possui em seu conteúdo questões que infelizmente temos que chamar de atemporais. E essa realidade, caro leitor, está longe, muito, muito distante de mudar, para a nossa decepção e descrença.


Agora, vamos acompanhar uma análise da série inspirada no texto dramático.


Era uma vez um dramaturgo chamado Jô Bilac. Ele escreveu Conselho de Classe. Foi premiado e ganhou projeção. Ao descobrir o texto, a dupla formada por Carla Faour e Julia Spaldaccini resolveu criar a série Segunda Chamada, uma das produções televisivas brasileiras mais surpreendentes do ano, haja vista a crueza e a emoção do conteúdo dramático, em simbiose com os seus elementos estéticos, um ponto bastante significativo na qualidade da ficção seriada televisiva produzida pela Rede Globo de Televisão. O ponto nevrálgico da narrativa é a crise na educação brasileira, tema que permite excelentes momentos de desenvolvimento de roteiristas e, respectivamente, do elenco no desempenho das situações mais aberrantes que qualquer pessoa de fora desse sistema possa imaginar.    


Sob a direção de Joana Jabace, guiada pelos roteiros assinados por Giovana Moraes, Jô Abdu, Maíra Motta e Victor Atherino, acompanhamos a trajetória de vários personagens coadjuvantes importantíssimos para o desdobramento da trama central, focada em Lúcia (Deborah Bloch), professora da Educação de Jovens e Adultos que segundo alguns flashbacks e comentários, retorna de um período tenso em sua vida, algo que envolve a morte de seu filho e a invalidez de Alberto (Marcos Winter), seu marido, homem que sucumbiu após a tragédia que tomou a sua família. Ela é a protagonista da série, mas isso não a faz ser uma mulher perfeita, o que torna o personagem e a sua trajetória ainda mais intenso e brilhante.


A história conflituosa com Marcelo (Artur Volpi), seu único filho, morto num atropelamento na saída da escola, após uma discussão calorosa com o professor Paulo (Caio Blat). Descobriremos, por meio de doses homeopáticas de revelações, as motivações dessa confusão, revelada próximo ao desfecho da temporada, justamente quando Paulo retorna para substituir a personagem de Deborah Bloch durante um breve afastamento da professora. Ela tem um caso amoroso com o diretor Jaci (Pedro Gorgulho), gestor com a difícil missão de manter a escola em funcionamento, além de ter que lidar com o problemático Leonardo (Leonardo Bittencourt), seu filho, um manancial de celeumas para deixar qualquer pessoa com a sanidade em constante fase de teste. São detalhes que tornam os personagens mais críveis e pulsantes, paralelos aos esquemas da nossa realidade, algo que permite maior aproximação com o público.


No amplo panorama dos coadjuvantes, temos Eliete (Thalita Carauta), professora que em muitos trechos funciona como alívio cômico e traz um pouco de leveza para a dura realidade escolar, o que não a impede de ser consciente de seu papel nos momentos de maios aspereza, no calor da hora em que é necessário tomar decisões complexas; Sônia (Hermila Guedes) é a professora de História cheia de problemas pessoais, viciada em medicação controlada e representação cabal da situação da classe de educadores no Brasil, um grupo de pessoas doentes diante da realidade brutal de um sistema falido; Marco André (Silvio Guindane) é o professor de Artes, idealista que descobre o teatro abandonado da escola, transformado em depósito, numa postura que muda a vida das pessoas que transitam pelo local, sem antes, no entanto, ouvir constantemente que as artes não são urgentes na dura realidade dos seus alunos.



Regidos por esse time de educadores temos Solange (Carol Duarte), aluna que rouba leite da cantina para alimentar o seu recém-nascido; Natasha (Linn da Quebrada), travesti que luta diariamente contra o preconceito e opressão de um país mergulhado nas “fobias” de toda classe; Maicon Douglas (Felipe Simas), estudante exemplar que consegue bons resultados na escrita, mas por conta da sua situação complicada em casa, com mulher e filho, todos à beira da fome, resolve realizar um assalto na sala de aula, o que deságua numa de tantas tragédias vivenciadas pelos alunos que circulam pela Escola Carolina Maria de Jesus; Gislaine (Mariana Nunes), estudante exemplar que trabalha como garota de programa e sofre assédio depois que sua profissão é exposta numa situação específica da escola; Silvio (José Dumont), idoso “morador” de rua, homem com brilhante desempenho na matemática e com sonhos para realizar, segundo algumas declarações em diálogos pontuais; Jurema (Teca Pereira), idosa que sonha em terminar os estudantes, mesmo que o marido machista não goste nada de sua atitude “avançada”.


Também são regidos pelo grupo de professores: Aline (Ingrid Gaigher), jovem ameaçada pelo antigo namorado tóxico; Joelma (Ariane Souza), a garota que vive constantemente na defensiva, sempre desconfiada; Jiraya (José Trassi), responsável pela circulação de medicação tarja preta nas dependências da escola, sendo o fornecedor oficial da professora Sônia; Valquíria (Georgette Fadel), aluna nova que sofre preconceito por ser ex-presidiária; Javier (Gabriel Diaz) e Alejandra (Rosalva Vanessa), estudantes venezuelanos que também são atacados constantemente pelos colegas, principalmente depois que seus lanches vendidos no pátio ganham maior destaque que os vendedores locais, alegoria para as tensas relações entre Brasil e Venezuela nos últimos acontecimentos geopolíticos sul-americanos; Pedro (Vinicius de Oliveira), marido de Marcia (Sara Antunes), casal evangélico que passa por algumas situações de complexidade no que tange aos relacionamentos com alguns alunos da escola, haja vista as crenças religiosas de ambos, bem como o fato de Márcia ter um recém-nascido e precisar amamentar no espaço escolar, motivo para polêmica, assédio de alunos imaturos, ciúmes do marido, etc.


Gravada na antiga escola do Jockey Clube de São Paulo, Segunda Chamada é uma série com traços estéticos bem-sucedidos. A direção de fotografia da dupla formada por Glauco Firpo e Marcelo Trotta atua para que os elementos dramáticos na produção sejam encenados da melhor maneira possível. Quadros e ângulos trabalhem numa simbiose perfeita para a exposição dos tópicos temáticos abordados, em especial o uso do zenital, angulação ideal para a extração dos anseios dramáticos de determinadas passagens. A direção de arte assinada por Dina Salem Levy age com eficiência na construção dos espaços por onde os transeuntes do programa interagem. As salas são sujas, as paredes urram por reformas, a arquitetura pede socorro diante de qualquer menção de chuva, o que designa alagamento e cancelamento das aulas. Os figurinos de Bia Salgado não permitem que a série saia dos trilhos do realismo, com personagens trajados dentro dos padrões urbanos que conhecemos, isto é, o básico jeans junto às combinações que dialogam com o poder de compra de pessoas sem grandes privilégios na sociedade de consumo contemporânea. A condução musical de Sacha Amback é outro setor que trabalha com eficiência, pois evita a inserção de qualquer composição carregada da costumeira musicalidade excessivamente intrusiva, geralmente em busca das lágrimas dos espectadores.


No desenvolvimento dos 11 episódios de 45 minutos da Primeira Temporada, o tema de abertura é a canção Comportamento Geral, de Elza Soares. Com cenas envelhecidas entre as caóticas dependências da escola e o prédio onde habita a protagonista, é um dos traços estéticos da série que permitem a nossa aproximação, pois dialoga bastante com os temas e situações desenvolvidas ao longo dos episódios. A emoção é extraída dos desempenhos dramáticos de um elenco forte, guiado por um texto idem, comandado por diretores competentes na execução de seus respectivos trabalhos. O resultado disso tudo é uma série exemplar, demonstração das possibilidades narrativas do audiovisual no Brasil, quando guiado por realizadores interessados na qualidade estética e dramática.


A produção ganhou uma segunda temporada. Em breve uma análise por aqui. Enquanto isso, assista e busque inspiração em seu cotidiano pedagógico, combinado?

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