Literatura e Vestibular: Capitães da Areia, de Jorge Amado
- Leonardo Campos
- 29 de ago. de 2024
- 6 min de leitura
Mergulhe no universo de Jorge Amado e domine a estrutura narrativa do romance selecionado para o Vestibular da UNEB.

Um painel de situações sociais comuns ao universo literário criado por Jorge Amado, Capitães da Areia foi publicado em 1937 e logo deixou a sua marca na história cultural brasileira, num retrato ágil e interessante da situação de um grupo de jovens em situação de abandono nas ruas da capital baiana, jovens embalsamados pelo determinismo de suas condições desde o nascimento, a crescer pelas ruas da cidade cometendo delitos para garantir a sobrevivência numa selva urbana ainda em formatação, numa das abordagens do escritor que mais dialoga com o contemporâneo, haja vista a longevidade da desigualdade social de nossa realidade, repleta de crianças e adolescentes largados pelos becos e vielas, a cometer os mesmos crimes dos personagens desta jornada literária entregue ao público há quase um século. Violentos e acoplados num trapiche onde estabelecem as suas próprias regras de convívio, os capitães soteropolitanos amargam diante de suas histórias, mas também almejam um futuro melhor. Casos de pederastia, forte passagem com uma cena de estupro, a animalização determinista que dialoga com a vanguarda naturalista e críticas aos meandros da Igreja Católica e aos reformatórios que tornavam a correção destes jovens ainda pior estão nas bases do romance.
Formado por mais de cinquenta crianças, o tal trapiche situado na praia é um espaço para este grupo de menores planejarem as suas ações. A existência destes jovens perigosos é retratada com sabedoria por Jorge Amado, em relatos apresentados por meio de reportagens fictícias, tendo em vista criar um clima de realismo para as histórias retratadas. Sabemos, pelo recurso jornalístico, que a cidade se encontrada infestada de pequenos ladrões, jovens perigosos e astutos que tem causado temor aos burgueses privilegiados em suas casas confortáveis, pessoas que sequer imaginam a dura realidade destas figuras relegadas ao abandono. Depois deste preâmbulo, o narrador desenvolve uma estrutura linear para contar os casos de Capitães da Areia, dando espaço para alguns recuos que contemplam as trajetórias de cada um dos personagens que integram o grupo. Sem delongas, o texto radiografa os perfis os jovens, permitindo que dados da época gravitem em torno destas descrições, permitindo ao leitor um assertivo processo imersivo num Brasil imaginado, mas com pé na realidade de fome e miséria.
Pedro Bala, chefe do grupo, é o rapaz loiro e filho de um grevista morto num local próximo ao cais. Ele posiciona-se como líder, tendo parado nas ruas aos cinco anos de idade, uma figura que precisou se adaptar ao que a vida lhe propôs. Em seu meio, convivem os seguintes personagens: Gato, um jovem que era muito bonito e cheio de aspirações, mas se encontra solapado pelas questões de abandono e descaso social; Professor, um rapaz que lê frequentemente para os demais garotos e cria também as suas próprias histórias; Sem Pernas, um rapaz com problemas de mobilidade na perna, por isso, considerado um “aleijado” pelos demais; Pirulito, jovem que depois de um tempo abandona a vida de roubos, comprometendo-se com outras causas; Volta Seca, uma divertida figura que se achava filho de Lampião, uma espécie de figura simbólica em sua trajetória forjada pela grande imaginação; João Grande, respeitado por ser robusto e causar medo por seu físico avantajado; Boa Vida, rapaz sempre insatisfeito com suas condições, dentre outros.
Neste panorama de personagens, ainda temos Dona Aninha, uma mãe de santo preocupada com a situação dos meninos, e o Padre José Pedro, também adjuvante dos garotos. Chegam também, mais adiante, Dora e Zé Fuinha, órfãos que perderam a família para a varíola, integrantes do grupo que transformam a dinâmica do espaço. Muitos garotos querem ficar com Dora, o corpo feminino ainda muito jovem, personagem protegida por Pedro Bala constantemente, tornando-se a sua parceira amorosa com o tempo, até o momento de sua morte, algo que abala as estruturas do protagonista antes do desfecho do romance. Em evolução constante, o herói amadiano se envolve futuramente em greves e toma os mesmos rumos de seu pai, lutando em prol dos oprimidos na cidade. Em sua saída, passa o comando para outro menino, afinal, o ciclo ainda continuaria e mesmo com a sua militância, ainda não seria possível resolver as questões sociais locais, mas ao menos, se posicionar conscientemente diante das circunstâncias. Ademais, parte integrante do que a crítica denominou como fase panfletária de Jorge Amado, Capitães da Areia também tece reflexões sobre a intolerância religiosa dominante na época, em especial, no caso da imagem de Dona Aninha, apreendida pela polícia numa fase tenebrosa onde não se podia legalmente realizar nada vinculado ao que era oriundo da religiosa africana, temática que seria desenvolvida mais adiante, nas publicações vindouras do escritor baiano.
Quer saber mais sobre a jornada política e literária de Jorge Amado? Me acompanhe.
Jorge Amado, um dos mais proeminentes escritores brasileiros, é uma figura emblemática que transcende as fronteiras da literatura e da política. Nascido em 10 de agosto de 1912, na cidade de Itabuna, na Bahia, Amado teve uma vida marcada pelo engajamento social e pelas lutas políticas, que se entrelaçaram de maneira indissociável em sua obra literária. Desde os primeiros escritos, Jorge Amado se destacou por dar voz à cultura, às tradições e aos problemas sociais da Bahia. Suas obras, como Capitães da Areia e Gabriela, Cravo e Canela, abordam a realidade da vida nas comunidades marginalizadas e da luta dos oprimidos. A narrativa de Capitães da Areia, por exemplo, retrata a vida de jovens moradores de rua em Salvador, destacando as dores, sonhos e a luta por dignidade em um contexto de exclusão social.
Essa escolha temática não foi meramente estética, mas sim um reflexo do compromisso de Amado com a justiça social, algo que permeou toda sua produção literária. A década de 1930 foi um período crucial para a formação ideológica de Jorge Amado. Influenciado pelo contexto político do Brasil e pelos movimentos sociais que emergiam na época, ele se tornou um ativo defensor do socialismo. Em 1935, Amado se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma decisão que iria moldar não apenas sua visão de mundo, mas também a maneira como ele se relacionava com a literatura. A partir dessa nova perspectiva, suas obras passaram a incorporar críticas mais contundentes ao capitalismo e à desigualdade social, refletindo sua convicção de que a literatura deveria servir como uma arma de transformação social.
A relação de Amado com a política não se limitou ao ativismo ideológico. Durante os anos 1940 e 1950, ele viveu um período de exílio devido à repressão política no Brasil, especialmente durante o governo de Getúlio Vargas. Esse exílio não impediu que ele continuasse escrevendo e se engajando em práticas políticas. Na Europa, Amado teve contato com outras correntes literárias e sociais, o que lhe proporcionou uma visão mais ampla sobre as lutas de classes e as questões sociais em diferentes contextos. Em suas obras, Amado frequentemente se valia de personagens que representavam as vozes silenciadas da sociedade, como os trabalhadores rurais, os negros e os indígenas. Essa caracterização não apenas humanizava os personagens em suas histórias, mas também tornava visível as injustiças enfrentadas por esses grupos.
Em O Casamento do Pequeno Burguês e Tenda dos Milagres, por exemplo, ele abordou as questões de identidade e pertencimento, destacando as particularidades culturais da Bahia, enquanto criticava as estruturas sociais que marginalizavam certas populações. Além de sua produção literária, Jorge Amado também desempenhou um papel ativo na política brasileira. Foi deputado constituinte em 1946 e, posteriormente, exerceu a função de embaixador do Brasil na França. Sua atuação política foi marcada por uma busca constante por direitos e igualdade, refletindo um compromisso com os valores socialistas que ele defendia.
A década de 1960, marcada pelo golpe militar no Brasil, trouxe novos desafios para Amado, que, uma vez mais, se viu forçado a buscar o exílio. Durante esse período, ele continuou a escrever, usando sua pena como ferramenta de resistência. Livros como A Descoberta da América pelos Turcos e Tiago e a Lâmpada Maravilhosa exemplificam seus esforços para criticar a opressão e a censura imposta pelo regime militar, além de explorar temas como a identidade nacional e a luta contra a repressão. O retorno ao Brasil em 1972 não significou um afastamento de suas convicções. Pelo contrário, Amado continuou a usar sua obra para discutir questões sociais e políticas. Seus últimos romances, tais como Mar Morto e Dona Flor e Seus Dois Maridos, embora possuam um tom mais leve, ainda trazem críticas à sociedade e à cultura brasileiras, reafirmando a importância da literatura na reflexão crítica da realidade.
Em suma, a jornada política e literária de Jorge Amado é marcada por uma intersecção rica e profunda entre arte e ativismo. Seus escritos não apenas documentam a realidade social, mas também se convertem em uma plataforma de resistência e transformação. Amado se tornou um ícone da literatura brasileira, não somente por sua prosa vibrante e envolvente, mas também por seu comprometimento inabalável com a justiça social e a dignidade humana. Seu legado perdura, inspirando gerações a se engajar na luta por um mundo mais justo e igualitário. É um autor de contradições, como qualquer outro, mas seu impacto cultural é notável e a presença em vestibulares demonstra o interesse da nossa sociedade em manter diálogo com os seus personagens e histórias.
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