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Literatura e Cultura: Vidas Secas na Era da Reprodutibilidade Técnica

A projeção do romance de Graciliano Ramos e suas traduções para outros suportes semióticos.


Vidas Secas na era da reprodutibilidade técnica
Fonte: Vidas Secas | Folha

Olá caro leitor, antes de adentrar nas versões imagéticas de Vidas Secas, vamos refletir sobre o que é uma tradução intersemiótica? A tradução intersemiótica é um conceito que se refere à conversão de significados de um sistema semiótico para outro. Em linhas gerais, é um percurso que envolve o processamento e a reinterpretação de signos que não pertencem necessariamente à mesma linguagem ou código. Este tipo de tradução é bastante comum em diversas áreas artísticas e culturais, onde a transposição de significados e formas de comunicação entre diferentes semioses se torna fundamental. Para ilustrar, podemos pensar em um exemplo clássico: a adaptação de uma obra literária para o cinema. Em tal processo, não se trata apenas de traduzir palavras de um livro para um roteiro. Envolve, além disso, a reinterpretação de temas, personagens e emoções, traduzindo não só a narrativa verbal em imagens, sons e movimentos, mas também adaptando a essência da obra para um meio que se expressa de maneira diferente. Este tipo de tradução permite que uma obra ganhe novas dimensões e significados em um contexto diferente.


Outro exemplo prático pode ser encontrado na adaptação de uma pintura para uma peça de teatro ou uma performance de dança. Cada forma de arte possui seu próprio conjunto de signos e técnicas de expressão. A tradução intersemiótica, nesse caso, seria a capacidade de captar a essência da pintura – suas emoções, temas e simbolismos – e traduzir essas qualidades em um novo formato performático ou cênico. O resultado é uma nova obra que, embora inspirada na original, possui um caráter único e próprio. Um aspecto fundamental da tradução intersemiótica é que ela não se limita a simplesmente transferir conteúdo; o tradutor, neste caso, ou o artista adaptador, deve considerar o novo contexto em que os signos serão utilizados. Isso significa que as escolhas estéticas, formais e narrativas devem ser feitas com a intenção de respeitar e, ao mesmo tempo, reinventar a mensagem original. O tradutor intersemiótico precisa estar atento às especificidades do meio que está utilizando para garantir que as nuances do original sejam preservadas, adaptadas ou expandidas.


Além disso, é importante reconhecer que a tradução intersemiótica é influenciada por elementos culturais, históricos e sociais. O contexto em que a ‘tradução’ está sendo realizada pode afetar profundamente a interpretação dos signos. Por exemplo, uma obra literária que é traduzida para um formato dramático em uma cultura pode não ter o mesmo impacto ou relevância em outra. As diferenças nas tradições artísticas e nas expectativas do público são fatores cruciais que moldam como a mensagem é recebida e compreendida. As tecnologias modernas também têm expandido o alcance e as possibilidades da tradução intersemiótica. Ferramentas digitais permitem a integração de várias formas de media, como textos, imagens, vídeos e sons, abrindo novas avenidas para a criatividade e a expressão cultural. O uso de plataformas audiovisuais, como redes sociais e aplicativos de compartilhamento de vídeo, demonstra como a intersemiose se tornou uma prática cotidianamente acessível e relevante nas interações culturais contemporâneas.


Importante também versar sobre o conceito de reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, vamos nessa? Será um breve percurso, antes de conhecermos melhor duas traduções imagéticas da obra-prima de Graciliano Ramos.


O conceito de reprodutibilidade técnica, desenvolvido por Walter Benjamin na sua obra A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica é fundamental para a compreensão das transformações culturais e estéticas na modernidade. Publicado originalmente em 1935, o ensaio de Benjamin analisa como a reprodução em massa de obras de arte, principalmente através da fotografia e do cinema, altera a percepção do público em relação a essas obras e, consequentemente, a própria essência da arte. No cerne do pensamento benjaminiano, a reprodutibilidade técnica refere-se à capacidade de reproduzir uma obra de arte sem que esta precise ser tocada ou mesmo estar presente no local em que é contemplada. Antes da era da reprodutibilidade técnica, como enfatiza Benjamin, a "aura" da obra de arte – um aspecto que confere à obra uma autenticidade e uma localização única em tempo e espaço – era essencial para sua apreciação. Elementos como a história, o local de exposição e a conexão emocional entre a obra e o espectador conferiam um valor inestimável ao objeto artístico.


Entretanto, a introdução da fotografia e, subsequentemente, o cinema, fez com que essa aura fosse diluída. As reproduções permitem que a obra de arte seja vista em múltiplos contextos e por um número vasto de pessoas, transformando sua natureza e seu valor. Benjamin argumenta que, ao reproduzir uma obra em larga escala, temos acesso a aspectos que não seriam percebidos em uma única experiência com a obra original. Por exemplo, no caso da fotografia, a capacidade de capturar momentos fugazes e de recontextualizar a obra altera a maneira como a percebemos. Um dos aspectos mais intrigantes do argumento de Benjamin é relacionado ao efeito político da reprodutibilidade. Ele sustenta que essa capacidade de reprodução pode democratizar o acesso à arte, permitindo que massas tenham contato com obras que antes eram restritas a grupos elitizados. No entanto, Benjamin também expressa preocupação com a possibilidade de a reprodutibilidade técnica ser utilizada para fins de manipulação, como acontece com a propaganda política e a indústria cultural. A capacidade de reproduzir algo indefinidamente pode levar a uma forma de alienação, onde a experiência estética se torna superficial e massificada, perdendo o peso e o significado que tinham em seu contexto original.


Ademais, Benjamin introduz a noção de que a obra de arte, ao ser reproduzida, pode ser transformada em um produto de consumo. A arte que era antes única e irreproduzível começa a ser consumida como um bem, refletindo a lógica do mercado capitalista. Essa transição tem implicações significativas na maneira como a arte é criada, distribuída e apreciada. A arte, que se torna acessível a todos, também se torna suscetível a um novo tipo de crítica e interpretação, que desafia o domínio da instituição artística tradicional. Ainda assim, apesar de suas preocupações, Benjamin não vê apenas aspectos negativos na reprodutibilidade técnica. Ele também aponta para as novas possibilidades que surgem, como a consumação da arte na vida cotidiana e a inovação estética que a reprodução pode proporcionar. A reprodutibilidade não promove a destruição da arte, em vez disso, ela a transforma e reinventa, levando a uma nova maneira de se relacionar com “o belo”.


Vidas Secas pelas lentes fotográficas de Evandro Teixeira


Quando Vidas Secas, de Graciliano Ramos, romance associado pela crítica literária aos livros da Geração de 30, completou 70 anos, o retomado fotojornalista Evandro Teixeira atravessou os territórios sertanejos de Alagoas e de Pernambuco para compor um conjunto de imagens que funcionassem como sua tradução em imagens para o icônico romance publicado em 1938. A edição, criada com primor estético e cautela literária foi lançada em 2008 e ganhou capa dura pomposa, luva com muito estilo, numa respeitosa edição para o romance que é um grande marco da nossa literatura do século XX, constantemente presente em concursos, vestibulares, tópicos temáticos de artigos, dissertações e teses acadêmicas, dentre outras instâncias de reflexão sobre literatura e cultura.  Neste breve artigo, pretendo analisar a publicação em questão, inicialmente fazendo um passeio pelo livro de Graciliano Ramos, posteriormente fornecendo ao leitor mecanismos para o trabalho de análise fotográfica, para na terceira parte, o desfecho, tecer reflexões sobre o processo de tradução de Evandro Teixeira. Vamos nessa?


Publicado depois da prisão do escritor pelo Estado Novo, Vidas Secas é um romance composto por capítulos desmontáveis, que nos possibilitam a sua leitura dissociados do conjunto, como contos sobre personagens dispersos pelo árido e inóspito sertão nordestino, um espaço de estabelecimento da miséria social que acomete o Brasil há eras. Na história, acompanhamos os arroubos silenciosos de Fabiano, Sinhá Vitória e seus filhos, o Menino Mais Velho e o Menino Mais Novo, acompanhados da humanizada Baleia, a cadela da família, personagem marcante por diversos motivos, dentre eles, a sua curiosa presença antropomórfica. Nesta jornada, eles atravessam o sertão e enfrentam por privações de todo tipo. Sofridos, os personagens ainda precisam tentar lidar as instâncias de poder, representadas na figura do Soldado Amarelo, além do esquema feudal de pertencimento ao trabalho, com ecos das relações feudais, em pleno século XX. Nesta travessia opressora, buscam driblar a circularidade de seus trajetos, mas a realidade é escaldante e ocre, como o próprio sertão, sem muito espaço para esperanças, delineando que a falta de perspectiva precisa ser aceita e vivida em sua terrível intensidade.

Vidas Secas na era da reprodutibilidade técnica
Fonte: Vidas Secas - 70 anos
Vidas Secas na era da reprodutibilidade técnica
Fonte: Vidas Secas - 70 anos

A subjetividade é um traço marcante da edição de 70 anos de Vidas Secas, acompanhada da tradução fotográfica de Evandro Teixeira, profissional que nasceu na região nordestina, em 1935, tendo sido marcado por memórias pessoais evocadas em suas imagens de visualidade intimista da população sertaneja, figuras sujeitas ao processo de mobilidade diante da insubmissa condição geográfica de uma região marcada por desigualdades sociais. Em sua composição, há planos distantes, que representam o isolamento destas pessoas em suas condições complexas, num trabalho primoroso que não insere aleatoriamente os personagens fotografados na paisagem, mas cria significados para as suas respectivas presenças, denotando a intenção do profissional em não aderir ao pueril flagrante supostamente aleatório, mas criar imagens com tons dramáticos, com cuidadosa oscilação entre luz e sombra, se distanciando da ilustração para entregar aos leitores da edição um cruzamento entre fotografia e literatura.


Ao longo das 208 páginas, Evandro Teixeira se apresenta como um construtor da realidade nordestina por meio de seu filtro cultural, isto é, a câmera fotográfica, imbuído pela representação deste “real” através da subjetividade, relacionada com a sua trajetória influenciada pelas diversas técnicas e estéticas, bem como a sua aproximação empírica com o ambiente retratado. Neste espaço formatado historicamente, o fotógrafo vive novas experiências, posteriores ao seu projeto sobre Antônio Conselheiro, Os Sertões e os conflitos de Canudos, desenvolvido na segunda metade dos anos 1990. O tom biográfico permeia todas as imagens, num trabalho que também se destaca pela expressividade do tom psicológico, postura que nos apresenta alguém saindo pela tangente e evitando a construção de um equivocado discurso panfletário, um risco para uma jornada do tipo. Os efeitos de seca estão delineados no design de suas imagens, não deixando de ser politicamente engajado e socialmente crítico. Vidas Secas: 70 anos, fotografado por Evandro Teixeira, é um deleite para os amantes da fotografia e da tradução intersemiótica. 


Vidas Secas em Graphic Novel


Em 1938, Graciliano Ramos publicou um grande marco de sua carreira literária: Vidas Secas, o icônico romance desmontável, isto é, estrutura que pode ter os seus capítulos lidos dissociados do formato em questão, compreendidos como contos, agrupados e transformados no livro que narra a saga de uma família pelos confins do sertão nordestino, acometidos pela violência da vegetação nativa, bem como pelo ardor dos raios solares que devastam a fauna e afastam as chances de sobrevivência diante de um cenário hostil que, infelizmente, parece ainda se repetir paulatinamente quase cem anos depois que esta obra-prima da literatura brasileira marcou, para sempre, as etapas subsequentes do movimento modernista idealizado na década de 1920. Em Vidas Secas, acompanhamos a saga de Fabiano e Sinhá Vitória, os pais do Menino Mais Velho e do Menino Mais Novo, figuras que ainda contam com a presença da humanizada Baleia, a cachorra da família, uma figura ficcional que nos leva as lágrimas quando é eliminada em determinado ponto do romance. Aqui, em suas 104 páginas, diagramadas pelo projeto gráfico da Editora Galera, nós podemos acompanhar o trabalho roteirizado com excelência por Arnaldo Branco, estrutura textual ilustrada por Eloar Guazzelli, dupla que sabiamente traduz os elementos do romance para o suporte semiótico visual, numa proposta assertiva de Graphic Novel.


Antes da abertura, uma página contendo a apresentação dos personagens sem diálogos, apenas dispersos no espaço de desenvolvimento da história, por meio de um plano geral, nós contemplamos o elucidativo prefácio de Elizabeth Ramos, professora do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia, profissional que apresenta a Graphic Novel ao leitor, por meio de um texto sem tom hermético, como geralmente costumam ser as análises encasteladas dos feudos acadêmicos, produções que, em muitos casos, não se preocupam em alcançar maiores leitores a não ser o próprio círculo do ego que muitas vezes estaciona a produção de conhecimento e o impede de transpassar os muros das universidades. Ramos, sabiamente, esmiúça a teoria da tradução intersemiótica e faz uma análise panorâmica da literatura e da cultura enquanto objeto de culto, numa apresentação efetiva, preocupada em explicar aos leitores que no processo de ascensão da era da reprodutibilidade técnica, a arte se expandiu e ganhou o público mais amplo, numa abordagem que passa pela Antiguidade, contempla a história da fotografia e do cinema, dando ênfase aos seus desdobramentos na popularização das artes.

Vidas Secas na era da reprodutibilidade técnica
Fonte: Vidas Secas em Graphic Novel

Com isso, a professora reforça que há várias maneiras de lermos uma obra artística, dando ainda destaque ao infame tópico temático da fidelidade, informando ao leitor que a Graphic Novel de Vidas Secas é uma interpretação do romance, uma tradução para os tempos atuais, não o texto para ser comparado ao ponto de partida de 1938, isto é, nem melhor, nem pior.  É apenas uma nova e válida forma de lermos obras de arte. Dito isto, importante para seguirmos com a análise do trabalho de Arnaldo Branco e Eloar Guazzelli, temos 13 capítulos que se propõem a ler, por meio de imagens, as passagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, aquilo que encontramos na audaciosa e concisa escrita do autor. O silêncio, presença marcante no romance, é representado por personagens sem os rostos completos, traçados com cores que nos remetem ao tom de aridez que compõe toda a Graphic Novel. Em cenas de estabelecimento de situações de injustiça, tons escuros e fortes dominam as imagens, num material com linhas demarcatórias bastante específicas, texto verbal desenvolvido dentro das limitações deste formato, bem como a presença de Baleia tal como no romance, mais humanizada que os próprios seres humanos.


Experiente em suas traduções de Nelson Rodrigues, isto é, as leituras de Vestido de Noiva e O Beijo no Asfalto para o formato em questão, Arnaldo Branco entrega passagens que deflagram o tom de miséria social, falta de perspectiva e demais elementos que são marcas do romance que serve como ponto de partida para esta versão de Vidas Secas. Ele descreve textualmente pontos importantes para compreensão do tom da obra, tendo como acompanhamento, as imagens de Eloar Guazzelli, um design de linhas demarcatórias propositalmente irregulares, uso constante de plano médio e primeiro plano, para captação das emoções dos personagens, com fonte criada exclusivamente para a Graphic Novel, isto é, um desenho sem serifa, inclinado, o que nos lembra a representação gráfica da caligrafia, além da orientação verticalizada, material espalhado pelos quadros em ritmo lento, expostos em perspectivas geralmente frontais.

Vidas Secas na era da reprodutibilidade técnica
Fonte: Vidas Secas em Graphic Novel

Ademais, ainda na seara estética, Vidas Secas traz um design com peculiaridades que reforçam os cuidados dos tradutores ao emular a literatura num processo de transformação de suas ideias em imagens: abstratos, os personagens são parcamente iluminados, criados com um tom monocromático, praticamente incorporados ao ambiente em que atravessem em cada capítulo. Na modulação do projeto, um intenso jogo de sombras ganha destaque, com saturação que delimita a presença de cores, numa história árida que ganha tonalidade distinta apenas em Inverno, o capítulo que delineia um breve feixe de esperança para os personagens e para nós, leitores, indivíduos que sabem exatamente como esta saga de falta de direitos humanos básicos termina, envolta numa circularidade hedionda, originada pelo descaso diante da miserabilidade social que nos persegue há gerações. Vidas Secas, em Graphic Novel, é a comprovação disso, afinal, traz para a contemporaneidade um problema social brasileiro deflagrado há quase um século, mas ainda uma triste e permanente realidade perversa. Em linhas gerais, a tradução da dupla é um primor, trabalho cuidadoso, respeitoso e necessário para incentivar a leitura.

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