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Literatura e Cultura: Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro e o Realismo em Portugal

Uma jornada de aprendizagem pelo movimento realista em Portugal, tendo como foco o romance O Crime do Padre Amaro, uma das principais publicações de Eça de Queirós.


Eça de Queirós Realismo em Portugal e O Crime do Padre Amaro
Fonte: Leonardo Campos

Eça de Queirós, um dos mais proeminentes romancistas da literatura portuguesa do século XIX, é amplamente reconhecido como o principal representante do realismo literário em Portugal. Nascido em 1845, em Póvoa de Varzim, Eça dedicou sua carreira a retratar a sociedade portuguesa de sua época, analisando criticamente suas hipocrisias, desigualdades e peculiaridades. O realismo, como movimento literário, emergiu na Europa na segunda metade do século XIX, em resposta ao romantismo, que predominou nas décadas anteriores. enquanto o romantismo frequentemente idealizava a vida e a natureza humana, o realismo buscava uma representação mais honesta e nua da realidade.


Eça de Queirós incorporou esse espírito realista em sua escrita, desafiando convenções sociais e colocando à prova a moralidade da sociedade portuguesa. Uma das obras mais emblemáticas do autor é Os Maias, publicada em 1888. Neste romance, ele traça um extenso painel da sociedade lisboeta, utilizando a história da família Maia para explorar temas como o amor, a traição, a decadência da aristocracia e os conflitos sociais. Através de personagens complexos e bem desenvolvidos, Eça revela as contradições do ser humano e as influências da sociedade sobre o indivíduo. O romance não apenas narra a trajetória da família Maia, mas também reflete os dilemas e as aspirações de toda uma geração, colocando em questão as estruturas sociais que dominavam a vida cotidiana.


Outra obra importante do autor é O Primo Basílio, publicada em 1878, que explora a infidelidade e a moralidade burguesa. Através da história de Luísa, Eça critica a hipocrisia da classe alta e expõe a fragilidade das relações humanas, alimentando a ideia de que a aparência muitas vezes mascara a verdade. O uso de ironia e sarcasmo em sua narrativa não apenas proporciona um senso de humor, mas também serve como uma poderosa ferramenta para sublinhar suas mensagens sociais. Neste sentido, o escritor consegue captar a “essência” do realismo: a legítima representação da condição humana, com todas as suas falhas e complexidades.

Eça de Queirós Realismo em Portugal e O Crime do Padre Amaro
Fonte: @mayaraffonseca

Um aspecto essencial do realismo de Eça de Queirós é seu estilo narrativo detalhado e observador. Ele emprega descrições vívidas que transportam o leitor para o ambiente em que os personagens se movem. Essa técnica não apenas enriquece a atmosfera do romance, mas também desempenha um papel crucial na construção do enredo. Os cenários urbanos, os costumes e as tradições portuguesas ganham vida sob a pena do autor, criando um espaço em que se desenrolam as tensões sociais e emocionais. O realismo do escritor é, portanto, uma combinação de observação aguda e capacidade de análise crítica, permitindo uma imersão profunda nas realidades sociais de sua época.


Eça de Queirós também se destacou por seu papel como cronista social e crítico incisivo das instituições tradicionais. Sua escrita vai além do romance, abrangendo crônicas e ensaios que revelam seu comprometimento com a crítica social e política. Ele utilizou suas observações sobre a vida cotidiana para discutir questões como a corrupção, o conservadorismo, e a ideologia em voga. Por meio dessas discussões, Eça não apenas refletiu sobre a sociedade portuguesa, mas também a desafiou a confrontar suas verdades incômodas. Outro aspecto que deve ser mencionado é a influência da obra de Eça de Queirós na literatura moderna. Seu estilo e abordagem realista pavimentaram o caminho para gerações posteriores de escritores em Portugal, que buscaram seguir suas pegadas. A sua capacidade de abordar questões sociais e psicológicas complexas inspirou autores como Fernando Pessoa, que, mesmo sob uma perspectiva diferente, explorou a subjetividade humana em suas obras. Eça, portanto, não é apenas um ícone do realismo literário; ele é um marco na evolução da narrativa portuguesa.


Apesar de suas inovações, Eça de Queirós não fugiu às críticas. A sua escolha de temas controversos e sua linguagem franca, muitas vezes considerada ousada e provocativa, geraram reações polarizadas. No entanto, é precisamente essa audácia que garantiu a relevância das suas obras ao longo do tempo. A maneira como ele desafiou normas sociais e representou a vida sem idealizações continua a ressoar na literatura contemporânea, demonstrando que o realismo do escritor, de certa maneira, transcende sua época. Em linhas gerais, Eça de Queirós é um pilar do realismo literário português, um autor cuja obra não apenas retrata a sociedade de seu tempo, mas também a critica de maneira incisiva. Suas contribuições para a literatura não se limitam a relatos de vida, mas se estendem a uma profunda análise das complexidades humanas e sociais. Através de personagens memoráveis e de um estilo que combina observação minuciosa e ironia mordaz, o português oferece uma visão distinta da Portugal do século XIX, uma visão que permanece relevante e impactante até os dias de hoje. Outra obra marcante, em destaque para os nossos estudos, é o polêmico romance O Crime do Padre Amaro.


Vamos acompanhar o seu enredo?


Eça de Queirós e a crítica social polêmica aos costumes em O Crime do Padre Amaro


Considerado o primeiro romance realista em língua portuguesa, O Crime do Padre Amaro traz em seu conteúdo uma série de características que comprovam a busca do escritor Eça de Queirós, que também era diplomata, em realizar para a literatura da época, o rompimento com as ideias do movimento romântico, tendo em vista incorporar os métodos de observação científica da realidade através da arte. Entre as propostas, buscava-se aderência ao contemporâneo e em sua caracterização, o escritor tinha como tarefa, posicionar-se criticamente a favor da reforma social, principalmente por conta da influência das ideias positivistas de Auguste Comte, em voga na época.


De acordo com a historiografia literária “oficial”, o realismo em Portugal surge mediante uma revolução intelectual que pretendia renegar e se opor aos ideais românticos. Coimbra, na época, era uma cidade repleta de estudantes e vista como ponto crucial para as modificações almejadas por este movimento de cunho revolucionário. Por conta dos centros de estudos localizados nesta cidade, as conferências e demais encontros aconteciam por lá e ganhavam ecos por todo o país. Os autores deste período tinham em mente “renegar a arte pela arte” e colocar a literatura à serviço da sociedade, sendo O Crime do Padre Amaro uma das obras que conseguiu estabelecer este panorama de mudanças.


Por ter sido nomeado membro administrativo da região onde a história se desenvolve, Eça de Queirós analisou o espaço e o povo durante seis meses, para mais adiante, esboçar o seu “romance-tese”. Na obra somos apresentados ao tórrido romance entre o Padre Amaro e a jovem Amélia, envoltos num ambiente onde o papel da religião é o ponto nevrálgico das discussões durante cada página da obra que trata, de maneira trágica, o amor entre uma jovem de 23 anos e o padre que, destinado a um posto que nunca almejou para si próprio, envolve-se numa perigosa relação que não termina nada bem: o resultado do namoro proibido é uma gravidez indesejada que resulta em um aborto responsável por ceifar a vida da moça.


Com um narrador cheio de adjetivos agressivos, a obra cumpriu bem o seu papel anticlerical, numa denúncia contundente aos problemas que o misticismo e a educação religiosa provavelmente promoviam numa sociedade regida por hipocrisias. Eça de Queirós tece as suas críticas por intermédio de um narrador onisciente que delineia os seus personagens de maneira bastante detalhista.  É um momento na literatura portuguesa que os “romances de entretenimento” declinam, em prol dos “romances de tese”, repletos de modelos comportamentais naturalistas.

Eça de Queirós Realismo em Portugal e O Crime do Padre Amaro
Eça de Queirós, seus romances e as traduções de O Crime do Padre Amaro para o cinema

Enquanto Amélia é desenhada como uma moça ingênua e vítima do meio em que vive (bem característico do naturalismo literário), o Padre Amaro é apresentado como um rapaz sem escrúpulos e sentimentos. Não é a toa que depois da tragédia envolvendo o aborto ele continua a exercer às suas atividades religiosas, como se nada tivesse acontecido. Sensuais desde jovens, os personagens mesclam religiosidade e sexualidade, sem a distinção dicotômica típica do ambiente cristão. Amaro desde criança olhava para as imagens da Virgem Santa e se excitava com as suas formas. Os personagens coadjuvantes exercem bastante influência na história central. Segundo alguns especialistas, eles ocupam espaço de importância porque são os responsáveis por incitar os personagens centrais na execução de algumas ações. São Joaneira é a mãe de Amélia, beata que hospeda o jovem Amaro e mantém um caso com Cônego Dias, homem moralista que não cumpre metade do que dita para os fieis da igreja. Ele é um dos responsáveis por manter em sigilo, a gravidez de Amélia.


Neste painel de tipos corrompidos pelo espaço onde circulam, há ainda Totó, uma paralítica que serviu de disfarce para Amélia se encontrar com Amaro, pois a moça alegava que ensinava o catecismo para a garota, quando na verdade se encontrava às escondidas com o padre; Dr. Gouveia, médico da cidade, também tem a sua parcela de crítica, tal como Tio Esgelhas, o dono da casa onde os jovens se encontravam. Libaninho exerce pouca influência, mas é o personagem efeminado da história, numa possível análise dos comportamentos sociais e sexuais que na época eram tabus.  O romance teve três versões. A primeira foi através da Revista Ocidental, veículo que publicou sem a devida autorização do autor, a história em folhetins. A segunda edição saiu em livro, com melhor acabamento, mas apenas em 1880 é que Eça de Queirós conseguiria finalizar O Crime do Padre Amaro, dando o arremate em alguns elementos, deixando-a como conhecemos atualmente.


A crítica em foco era a corrupção do catolicismo e a quebra do celibato, mas entre os demais temas, podemos destacar a maledicência, o vazio interior de seus personagens, o poder exercido pela religião na vida das pessoas, ao reger comportamentos, bem como a contraposição dos pobres em relação aos abastados pobres que circulavam pela sociedade, clamando por assistência. Há duas adaptações diretas do livro: em 2002, o mexicano Carlos Carrera dirigiu o roteiro de Vicente Leñero, sendo um dos indicados ao Oscar e Melhor Filme Estrangeiro; em 2005, o cineasta português Carlos Coelho da Silva assumiu o posto de direção, tendo como base o roteiro de Vera Sacramento. Enquanto a adaptação mexicana trouxe o romance para o contemporâneo, a versão portuguesa permaneceu dentro do território do romance, com leves alterações.


Quando publicado, O Crime do Padre Amaro causou rebuliço na sociedade, principalmente por conta dos movimentos da igreja, revoltada com a forma de representação moldada por Eça de Queirós.  Aclamado, o romance é tido como um documento humano da sociedade portuguesa da época. Ponto alto da carreira literária de Eça de Queirós, o trágico desfecho do relacionamento proibido entre Amaro e Amélia é também um dos romances que fazem parte do estreito, elitista e exclusivista cânone literário mundial, uma “crítica” social das boas.


Como dito no texto sobre Machado de Assis e o Realismo Brasileiro, é muito importante que conheçamos as características do período literário, mas também tenhamos em mente a importância da leitura das narrativas, para melhor compreender as vanguardas literárias, bem como desenvolver práticas de leitura que se desdobram numa escrita mais crítica e rica.


Abaixo, algumas peculiaridades do Realismo em Portugal. Acompanhem.


1. Observação Minuciosa da Realidade: Os escritores realistas empenharam-se em retratar a realidade de forma detalhada, usando a observação rigorosa. Buscavam representar fielmente a vida cotidiana, sem idealizações.


2. Crítica Social e Política: A literatura realista frequentemente abordava questões sociais e políticas, criticando as injustiças, a hipocrisia e a corrupção presentes na sociedade da época, especialmente evidenciando as desigualdades de classe.


3. Personagens Complexos e Comuns: Diferentemente do Romantismo, que exaltava heróis e figuras excepcionais, o Realismo focava em personagens comuns, com vidas e dilemas realistas. Essas personagens eram psicologicamente complexas e baseadas em figuras do dia a dia.


4. Desenvolvimento do Romance de Caráter: O romance realista sublinhava o desenvolvimento psicológico e moral dos personagens, explorando suas motivações, pensamentos e emoções de forma profunda e crítica.


5. Anticlericalismo e Secularismo: Muitos escritores realistas adotaram uma postura anticlerical, criticando a influência excessiva da Igreja Católica na sociedade e promovendo uma visão mais secular e laica da vida.


6. Estilo Objetivo e Impessoal: A escrita realista se caracterizou por um estilo mais objetivo, impessoal e descritivo, evitando o subjetivismo e a emotividade excessiva do Romantismo. A linguagem era clara e direta.


7. Influência da Ciência e do Positivismo: O desenvolvimento das ciências naturais e sociais influenciou os escritores realistas, que adotaram abordagens mais científicas e analíticas para entender e descrever a sociedade, influenciados pelo Positivismo de Auguste Comte.


8. Compromisso com a Verdade e a Verossimilhança: A verossimilhança e o compromisso com a verdade eram fundamentais. Os realistas buscavam criar narrativas críveis e plausíveis, baseadas em fatos e experiências reais.


9. Ambientes Urbanos e Rurais: A descrição detalhada dos ambientes, tanto urbanos quanto rurais, era uma característica recorrente. Os autores exploravam os diferentes modos de vida e conflitos presentes nessas áreas.


10. Influência de Autores Estrangeiros: Escritores portugueses foram influenciados por autores realistas estrangeiros como Balzac, Flaubert e Zola. Essa influência ajudou a moldar a literatura portuguesa, introduzindo novos temas e técnicas narrativas.

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