Entrevista | Gildeci Leite e A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento
- Leonardo Campos
- 16 de ago. de 2024
- 8 min de leitura
Escritor e professor baiano versa sobre o seu livro, agora em segunda edição, selecionado como um das narrativas literárias para o Vestibular da UNEB.

Professor da UNEB e escritor em constante ação, Gildeci Leite topou ser o primeiro entrevistado da coluna Literatura e Cultura do site. Confira agora as audaciosas respostas sobre o que foi questionado acerca do livro A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento, uma das narrativas literárias do Vestibular da Universidade Estadual da Bahia.
Gildeci, ao longo do livro há um painel de personagens com nomes bíblicos, escolha que fica evidente o uso da ironia em sua escrita. Qual deles é a sua figura ficcional favorita? Ah, e qual foi o mais desafiador para compor?
Talvez o favorito pudesse ser Preto da Costa, que seria Pedro da Costa, contudo ficou sendo Preto, quando Exu converte o possível potencial depreciativo da palavra preto — potencial imposto por uma voz racista — em energia positiva, um devir, um vir a ser positivo. Exu aproveita a oportunidade e retira o nome do sacerdote do mundo cristão. Contudo, permanecendo no território de nomes cristãos, Maria é uma personagem desafiadora, vítima do racismo que se torna algoz. Parafraseando Paulo Freire, ela é a oprimida que realizou o sonho de ser opressora, não apenas ela. Maria recebe ordens da alta cúpula da igreja, sem o devido acesso a essa cúpula. Mesmo vivendo em um período ficcional com alternativas de luta, Maria prefere o caminho indicado por sua mãe — também vítima do racismo. Acredito que um dos maiores desafios, se encontra no risco de a leitora e o leitor não entenderem o teor de denúncia, afinal Maria é uma vítima do adoecimento provocado pelo racismo, o personagem Messias — também negro — foi descartado e logo recrutaram Maria. Denuncio o descarte do povo negro.
Poderia ser um personagem masculino com a desenvoltura e liderança de Maria, mas optei pela problematização do jogo de identidades feito por diversos segmentos, que controlam o mercado da fé. Eles aprenderam muito rapidamente a colocar representações femininas e negras em suas linhas de frente, assim conseguem neutralizar algumas ações de setores, que se dedicam a desmascarar as verdadeiras intenções do mercado na fé. É muito mais difícil atacar uma mulher negra — mesmo que ela esteja agindo como capitã do mato —, então a cooptação de pessoas negras para atacar o mundo negro é algo feito desde sempre no mundo real, assim eu não poderia ter escrito diferente na ficção, fiz a denúncia. Embora ficção seja ficção e realidade seja realidade, o enredo propõe olhares mais atentos ao potencial de adoecimento do racismo e às armadilhas que podem ser realizadas no jogo identitário.
Vamos de “filosofia da composição”: o que te motivou ao ato de escrita de A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento?
Quis colocar no papel, a partir da assunção de narrativas da mitologia — narrativa primordial e não mentira — afro-brasileira, a denúncia do racismo religioso contemporâneo, sem abrir mão do riso. Busquei caminhos de naturalidade, colocando noções de pertencimentos de axé e suas resistências como condutor da escrita. Na narrativa, o axé é questionado e é arma de resistência. O ser e estar no mundo a partir de religiosidades afro-brasileiras, afro-baianas são atacados todos os dias no mundo real de forma renovada, então resolvi ficcionalizar.
Na transição entre a primeira e a segunda edição, o que mudou em seu livro?
Na edição angolana, tive o generoso prefácio de Manuel Rui, e agora tive os também generosos escritos de Muniz Sodré e a orelha feita pela doutora Carla Patrícia Santana (UNEB) — edição brasileira da Segundo Selo. Mantive uma árvore na capa, pela Mayamba um baobá e na Segundo Selo uma gameleira branca, portais de ancestralidade, além de mudanças nas perspectivas das diagramações internas. O texto da obra é o mesmo.
Há uma divisão estrutural curiosa. Os primeiros capítulos são curtos, logo depois ficam mais extensos, depois voltam a ficar menores. O 15º, por exemplo, é bastante extenso. Numa era de discussões sobre falta de foco nos jovens leitores, tendo em vista que a publicação é parte integrante do vestibular da UNEB, acredita que a escolha possa atrapalhar a aproximação do publico mais jovem e se tornar mais restrito aos circuitos acadêmicos?
Primeiro é preciso lembrar que o livro não foi feito por encomenda para este ou aquele vestibular (risos). Aproveito para renovar os agradecimentos à UNEB e para expressar novamente minha felicidade. De fato, há capítulos curtos e extensos e um vai-e-vem, a lembrar danças de orixás, inquices, voduns, caboclos e ancestrais, quem sabe o recurso do “enquanto isso” utilizado no audiovisual. Em uma conversa, um bate-papo, o ritmo e o limite de tempo entre uma informação e outras possui variações desproporcionais, sei que isso pode dificultar um pouco a leitura, mas também incentiva ao exercício da busca, balança os neurônios. Escrevi no ritmo de uma extensa consulta aos orixás, inquices, voduns, caboclos, eguns. A depender da tradição, eles incorporam ou materializam e conversam conosco, dão conselhos, fazem reclamações, nos abençoam. Exu está diante de Olorum (aquele que habita o céu, o grande Deus nagô), conversando — embora Olorum não fale, pois a nós não é dado o direito de ouvir a voz de Olorum, ele tudo sabe.
A dinâmica de representação dos corpos no romance difere entre homens e mulheres. Em todas as passagens que retratam cenas de sexo ou de pensamentos sobre o assunto, os corpos femininos são descritos em pormenores: seios, genitálias... diferente dos corpos masculinos. Atribui isso ao seu lugar de fala?
Quem já viu Exu incorporado e conversando entenderá. Há tradições afro-brasileiras, nas quais Exu conversa, canta, dança. Vi, desde minha juventude, Exu dando conselhos, brincando e quando brincava falando de sexualidade, principalmente entre homens, falava de desejos a corpos femininos da mesma forma que o Exu da ficção. Recriei falas de Exu. Evidente, que há tradições e tradições e comportamentos diferentes de Exu dentro dessas tradições, preferi misturar diversas observações. Lembro de Exus incorporados em homossexuais masculinos, que tinham comportamentos contrários aos quereres de seus filhos, o mesmo acontecia quando eram mulheres heterossexuais. É preciso entender a relação de Exu com a sexualidade, primeiro que Exu é do sexo masculino, possui o pênis ereto como símbolo e é o responsável por encontrar o lugar adequado para a genitália feminina, quando Oxalá na construção dos corpos das mulheres, teve a dúvida onde colocá-la. Exu é guloso também sexualmente, contudo não confunde seus desejos com violência, ele namora somente quando é convidado ou quando conquista.
Dentro da lógica de alguns fragmentos de afro-baianidade, eu poderia inserir os Exus femininos, que não são representações africanas, mas afro-brasileiras. Aí então, tendo Padilhas e Pombagiras, por exemplo, como narradoras e/ou personagens haveria possibilidade exaltações parecidas aos corpos masculinos. Isso acontece, pois assumo a recriação literária respeitando a mitologia afro-brasileira. Acredite, um Exu tradicional africano ou afro-brasileiro não poderia ser ficcionalizado com elogios amoroso e/ou sexuais a homens. Contudo, os orixás respeitam e acolhem todas as formas de amor. Essa pergunta me levou a uma recordação dos anos 1990. Na época eu frequentava uma casa de umbanda na periferia de Salvador, durante uma sessão de caboclo, uma visitante — fingindo incorporação — avançou com um flerte a um visitante do sexo masculino. A dona da casa estava incorporada pelo caboclo Marujo — que possui algumas semelhanças com Exu. Vendo aquilo, Marujo disse que ali não era lugar daquelas coisas e que ele nunca viu Marujo gostar de homem, pois a visitante fingia estar incorporada também de Marujo. A comunidade LGBTQIAPN+ presente revoltou-se com a charlatã. Ou seja, Marujo, assim como Exu deseja pessoas do sexo feminino. A literatura que eu faço é de axé e, sendo assim, precisa tomar alguns cuidados como não revelar segredos e não desconstruir modos de ser do axé, mesmo não sendo uma literatura de cunho religioso e proselitista, trata-se de cuidado com o verossímil.
Numa era de conquistas expressivas para muitos movimentos sociais e questões antes não debatidas sobre raça e religião, ainda temos que lidar constantemente com a fúria dos preconceituosos, principalmente nas redes sociais, uma “terra de ninguém”. Você já foi assediado/atacado por algum leitor ou aluno equivocado e intolerante?
Sobre “A Casa do Mistério ou a Casa do Renascimento” já recebi alguns questionamentos a respeito desta ou daquela personagem, que teria semelhança com esta ou aquela personalidade da vida real. Alguns leitores já renomearam personagens e eu sempre respondo que leitoras e leitoras compõem novas autorias em suas interpretações. Apenas ouço! Entretanto, sei que à medida que o livro for lido possíveis intolerantes e/ou equivocados poderão agir. Em outros contextos já vivi enfrentamos com racistas e equivocados.
Agora vamos versar sobre perspectivas para o futuro. Como atuante no campo do cinema, li cada capítulo pensando sobre como faria uma tradução para outros suportes semióticos. Se o seu livro fosse levado para a linguagem cinematográfica, como gostaria que fosse o processo?
Gostaria que as traduções tivessem o cuidado para evitar equívocos, que prejudicassem a mitologia afro-brasileira, a afro-brasilidade, que mantivessem o respeito à dignidade humana. Vou tentar explicar! Por mais de uma vez vi personagens no audiovisual, que são de axé e que na hora do sexo continuam com suas contas de orixás no pescoço, as vezes até utilizam as contas para “laçar” o parceiro ou a parceira. Pode parecer bobagem, mas isso é algo básico, nós não fazemos sexo com nossos objetos sagrados em nossos corpos. Quanto à possibilidade de tradução para o cinema, devo dizer que escrevo pensando com um cinema em minha cabeça, uma fanopéia ou imaginação visual na cabeça. Acredito que o editor da Mayamba percebeu algo de cinematográfico, pois apenas numerei os capítulos e ele os definiu como cenas. Então, o livro voltou ao meu e-mail com a palavra “cena” diante de cada número. Será uma grande alegria ver o livro inspirando as telas.
Dos livros selecionados para o vestibular da UNEB, quais você atribui uma associação temática ou estilística mais próxima de A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento?
Ainda não li todos, mas “Laboratório de Incertezas” de Wesley Correia também navega nas águas de axé e do combate à intolerância religiosa, principalmente no capítulo que ele retoma “Deus é Negro” com poesias de axé.
A leitura é um problema crônico na realidade social brasileira, mas os interessados em realizar o vestibular da UNEB terão que ler não apenas o seu romance, mas uma expressiva lista de livros. Para finalizarmos, como você acha que os professores podem criar estratégias mais sedutoras para atrair o público jovem rumo ao ato cidadão da leitura?
Primeiro aproveito para te parabenizar pela iniciativa! Conversar com as autoras e os autores, levar essas conversas para a sala de aula é muito bom, isso que você está fazendo é muito bom. Promover encontros com autores e autoras sempre gera algum encantamento. Também discussões comparadas, sejam comparações com outras obras e/ou com aspectos da vida real ajuda. Parte do que acontece em A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento tem circulado nas redes sociais como denuncia e/ou louvação. Outro dia uma amiga enviou um vídeo de um perfil do Instagram, que parecia ter sido tirado do romance, também já enviaram matérias jornalísticas. O livro é atual e estabelece comunicações com o passado. Alguns investimentos em olhares entre literatura e história ajudariam. Agora, as possibilidades de traduções para o cinema, jogos eletrônicos, música e cia, ajudariam muito o professor. Sabemos que haveria aqueles que continuariam resistentes à leitura do livro, mas acredito que a maioria iria entender as traduções semióticas como incentivos à leitura do livro e ao debate.
Adorei a entrevista!!!!