Como e Por Que Sou Crítico de Cinema
- Leonardo Campos
- 25 de jul. de 2024
- 9 min de leitura
A importância da crítica de cinema como recurso para reflexões entre realizadores, narrativas e público.
A reflexão proposta neste texto parte de algumas iniciativas do autor enquanto docente de cinema e audiovisual e crítico de cinema atuante neste campo discursivo responsável por intermediar as produções realizadas pela indústria com os espectadores, bem como os demais envolvidos nos mecanismos que engendram a cultura cinematográfica. Por que procuramos, desesperadamente, a crítica de cinema? A questão norteadora tem como ponto de partida, o paradoxal processo de democratização dos espaços de análise fílmica, oriundo do surgimento da cultura participativa na esfera virtual pública, situação que permite textos maiores, da mesma maneira que mais agentes de reflexão sobre cinema, algo que, no entanto, também abriu uma fenda perigosa, com autores contaminados pelos padrões das redes sociais e seus textos ligeiros e superficiais, partes integrantes de uma dinâmica cada vez mais vertiginosa que transforma a ideia de crítica como um texto guia de consumo. Foi desta preocupação que surgiu a aula Procura-se a crítica desesperadamente, realizada no curso Leitura de Cinema III, idealizado pelos cineclubes Cinecitta, Fruto do Mato, Vesúvio e Janela Indiscreta, em 2021. O título também se bifurcou por outros formatos e se tornou uma palestra, uma oficina e um livro, continuações das ideias da dissertação de mestrado Terra de Ninguém: a crítica cinematográfica na internet, defendida em 2015, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
Como docente e crítico ativo, foi possível perceber, ao longo dos anos de amadurecimento no campo em questão, a visão equivocada de muitos interessados em cinema sobre a tarefa da crítica de cinema como gênero discursivo responsável por interligar as produções lançadas cotidianamente e o público. Por isso, para pensarmos a crítica além do guia de consumo, elaborei uma proposta que tinha como objetivo, elucidar para o máximo de estudantes, leitores e até mesmo os pares no campo de atuação, as atribuições para uma crítica de cinema coesa. Isto, no entanto, não denota a realização de textos cifrados, para consumo apenas de pessoas com vasto repertório cultural, ao contrário, a ideia era mesmo traduzir a suposta complexidade da linguagem cinematográfica para permitir a formação de plateias mais reflexivas, interessadas em textos que não fossem pequenos resumos impressionistas, focados em definir para os leitores se um filme é bom ou ruim. Ademais, além destes objetivos, a elaboração desta proposta também teve como norte, elucidar que crítica e release são construções textuais distintas, pois uma reflexão crítica não deve se prender apenas ao esquema de traçar curiosidades e contar a história da trama analisada. Para a jornada, foi preciso elucidar o conceito e a função da crítica de cinema.
Mas, afinal, o que é a crítica cinematográfica?
A crítica cinematográfica é um dos mecanismos responsáveis por mover as produções da indústria cinematográfica, comportando-se como gênero do discurso que conecta os filmes ao público e permite, neste processo, a promoção da reflexão no interior desse campo de atuação, tendo em vista também estabelecer diálogos entre realizadores e seus públicos. A crítica possui atribuições delegadas ao longo de sua formatação na história. No que tange aos seus aspectos estruturais, a crítica é um discurso sobre um discurso, uma linguagem segunda ou metalinguagem, que se exerce sobre o texto artístico. Tal afirmação de Barthes (2007) se assemelha ao que Vasconcelos (2000) reforça sobre o papel do crítico de cinema, um agente responsável por traduzir a obra para uma linguagem verbal. A crítica, na ótica destes autores, não tem como direcionamento, fornecer respostas aos leitores, mas ativar o espectador para que ele mesmo formule as suas respostas, algo que acabou relativamente esquecido na atual fase dos textos encarados como guias de consumo, algo que, por sua vez, não é características da internet e das redes sociais, pois críticos renomados, como Rubens Edwald Filho, já faziam isto em suas análises superficiais em revistas pomposas e nas entrevistas transmitidas pela televisão. Ademais, delegasse ao crítico a incumbência de desvendar detalhes não apenas da obra, mas da sua época, pois esse profissional tem uma importante representação na sociedade, haja vista que a sua atuação vai além dos aspectos mercadológicos.
Como aponta Melo e Souza (1995), a crítica cinematográfica cotidiana é um material de estrutura porosa, que não fala apenas do filme, mas de questões como a cultura de um povo, bem como dos aspectos econômicos e políticos, por isso, baseando-se nessas informações, podemos dizer que a crítica tem por trabalho, refletir sobre o cinema como indústria e arte e fornecer possibilidades interpretativas dentro de um determinado contexto. Quando olhamos para o passado e descobrimos que muitos filmes perdidos no tempo, arquivos diluídos pela ação do tempo ou parte de uma época que não havia preocupação em demarcar registros históricos para o cinema, uma arte relativamente nova, compreendemos o quão importante é a função da crítica e como este gênero discursivo vai além do guia de consumo.
No elucidativo “Uma tese sobre a crítica literária brasileira”, Alberto Pucheu enumera uma série de tarefas para a crítica, no âmbito da literatura, mas com possibilidades assertivas de associação com as análises cinematográficas. De acordo com o autor (2012), “a crítica habitualmente classifica, esquematiza, sistematiza, cataloga, codifica, descreve, analisa, demonstra, explica, busca as fontes, hierarquiza, mostras as fases de evolução, organiza pelas semelhanças”, atribuições que são complementadas sobre este gênero discursivo, textos que permitem que haja demarcação da genealogia livresca de certos temas, execute histórias da literária para manuais de sua divulgação, bem como arquive, clarifique, oferte dados cronológicos biográficos e bibliográficos desconhecidos do público, reveja fortuna crítica, dentre outros. Nesse mesmo texto, o pesquisador traça um panorama da crítica literária no Brasil, recortando em sua apresentação a figura de Antônio Candido, e também de Silviano Santiago, explicitando que os renomados críticos literários, em muitos textos publicados, desvalorizam a crítica em detrimento do “valor” contido no texto literário. É como o crítico de cinema que se perde no valor do filme analisado e esquece que o seu texto é uma “obra original”, isto é, produção que tem necessidade de ser igualmente criativo e não uma produção que surge a reboque da obra cinematográfica.
Desta maneira, quando trazemos esta reflexão para o âmbito da crítica de cinema, torna-se possível observar que a crítica não deve vir a reboque do filme, ao contrário, é um texto que deve ser produzido como uma leitura do mesmo, como uma interpretação, e, concomitantemente, como um documento histórico que cataloga um feixe de produções em seus respectivos contextos. Na aula Procura-se a crítica de cinema desesperadamente, refletimos sobre como a tarefa da crítica mostra-se bastante sadia para a manutenção da indústria cinematográfica, afinal, sem crítica, as possibilidades de um “cinema forte” são desfavoráveis. Longe do impressionismo que predomina em uma boa parcela da crítica cinematográfica, inclusive no Brasil, o crítico precisa ter noção da sua importância para o panorama do cinema enquanto arte e produto que engendra a indústria cultural. A quantidade de atividades que a crítica realiza no circuito artístico, segundo Alberto Pucheu, reitera o caráter múltiplo das possibilidades existentes para o cumprimento da tarefa do crítico de cinema.
Conforme destaca Carmona (2002), há na crítica engajada o propósito de torna legível, e, consequentemente, compreensível, o numeroso conjunto de signos desordenados visto em um filme, e, dessa forma, oferecer ao leitor uma maneira de entender a obra, propor um olhar para que o espectador possa refletir e trazer a sua compreensão para o filme e também para o texto sobre a produção contemplada, aproximando-se ou distanciando-se das ideias do crítico. Ainda na seara das características inerentes ao gênero discursivo em questão, temos que ressaltar a sua estrutura persuasiva, afinal, nós estamos diante de um trabalho que tem como direcionamento, a defesa de um ponto de vista, com valores a serem sustentados. Como delineia Tito Cardoso Cunha em Cinema, crítica e argumentação, a crítica surge, nalgumas vezes, de forma apaixonada, como todo discurso valorativo, confirmando-se o que escritor inglês Oscar Wilde alegou, no século XIX, sobre toda “crítica ser uma autobiografia”. Ao escrever, o crítico também fala de si, expõe sua visão sobre o seu tempo, os costumes e a sua ideologia. Para ilustração deste ponto de vista assertivo, basta ler os textos de Glauber Rocha, desde as germinações críticas predecessoras do Cinema Novo, aos escritos durante e depois do auge do movimento. Há bastante interferência das impressões do sujeito em cada linha de suas reflexões.
Como desenvolvido no panorama de teorias que embasaram a dissertação Terra de Ninguém: a crítica cinematográfica na internet, material integrado ao processo de formatação da aula que se desdobrou neste texto, torna-se relevante também trazer as concepções de Bordwell (1991), sobre o “fazer” de um crítico, isto é, diferentemente do leitor comum, baseia-se em convenções estipuladas por instituições interpretativas, empregando, dessa forma, habilidades na resolução de problemas para chegar até o que se espera da sua função: a interpretação de um filme. Para o autor, a crítica de cinema é uma prática discursiva cognitiva e retórica que procura moldar-se nas instituições em que está inserida, seja o espaço acadêmico ou a resenha de jornal, site ou redes social. Entender a crítica é olhar mais uma vez para o passado e refletir sobre a sua terminologia: oriunda do latim criticus, do grego clássico kritikos ou krités, designando apreciação ou julgamento, a sua tarefa envolve a argumentação, ou seja, preparar o leitor e expõe uma tese ou opinião de determinada maneira, através de um estilo específico.
Inspirado no feixe de questões levantadas pelos participantes da aula e das reflexões que chegam ao longo de alguns anos em palestras, oficinas e na docência do componente curricular Crítica cinematográfica, ministrado no curso de Cinema e Vídeo da UNIFTC Salvador, provoco o leitor com pontuações interrogativas para uma elucidativa abordagem da crítica de cinema na contemporaneidade, numa travessia que pretende nos responder por qual motivos nós estamos procurando a crítica de cinema desesperadamente. Primeiro ponto: a crítica de cinema na internet está mais para jornalismo ou publicidade? Neste caso, temos algo muito relativo. Há sites de cinema preocupados com a publicação de textos mais firmes, cuidados, focados na reflexão, como é o caso do Cinema em Cena e do Plano Crítico. Já em sites como o Cine Pop, por exemplo, estudado durante alguns anos na pesquisa acadêmica realizada na Universidade Federal da Bahia, mencionada anteriormente, podemos dizer que há um esquema híbrido de jornalismo com publicidade, pois os textos são cheios de marcadores que determinam se a obra deve ou não ser assistida, além de se prender apos aspectos estritamente publicitários que não devem ser levados tanto em consideração por pessoas realmente preocupadas com o status da crítica enquanto mecanismo que fortalece a indústria cinematográfica, tais como a bilheteria boa ou ruim, curiosidades sobre o elenco, fofocas de bastidores, dentre outros.
Mas, afinal, a crítica de cinema é algo tão relevante assim? Sempre respondo que sim, bastante, algo já destrinchado ao longo dos parágrafos anteriores deste texto. Há filmes que se perderam na Alemanha em plena Segunda Guerra Mundial, produções brasileiras das primeiras décadas do século XX, também desaparecidas. Os registros históricos que se tem destas obras foram encontrados através de publicações da época, ou seja, em críticas que nos permitem saber da existência destes conteúdos, mesmo que, infelizmente, só possamos saber da sua passagem na memória cultural por meio dos textos críticos.
Procura-se a crítica desesperadamente? Sim, se o leitor pensou em Procura-se Susan Desesperadamente, comédia romântica com Madonna, dos anos 1980, acertou. Na minha dissertação, ao traçar um panorama histórico da crítica de cinema no Brasil, intitulei cada tópico com uma paródia cinematográfica. Foi uma maneira que arranjei para homenagear o cinema e tornar o texto mais atrativo. Ao falar da crítica nos anos 1920, trouxe Tempos Modernos. Na radiografia da crítica nos anos 1950, intitulei o tópico de Eu sei o que a crítica fez em meados do século passado. Chamei Moniz Vianna de “o homem que sabia demais”, numa alusão ao mestre do suspense, Alfred Hitchcock. Gosto muito de metalinguagem e acredito que no processo de resgate, permitimos que os leitores ampliem o seu repertório cultural. Geralmente no desfecho dos encontros sobre esta procura da crítica em tom desesperado, os participantes costumam questionar o que uma crítica relevante precisa ter: sempre reforço que toda pessoa que determina estas coisas acaba parecendo totalitário, algo estranho, pois a crítica pode ser muita coisa, mas particularmente falando, uma crítica precisa dar conta dos elementos estéticos sem deixar de lado os aspectos contextuais. Textos que contam o que é o filme e o indicam para consumo podem ser considerados como críticas de cinema. Se isso é germinativo para o estabelecimento de um campo de atuação já é outra coisa. Acho ruim quando a crítica é apenas impressionista, isto é, uma crítica baseada no achismo e sem muita fundamentação.
Referências
AGUIAR, Flávio. As questões da crítica literária. In: MARTINS, M. Helena (org.) Outras leituras: Literatura, televisão, jornalismo de arte e cultura, linguagens interagentes. São Paulo: Senac, 2000.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BORDWELL, David. Making meaning: inference and rethoric in the interpretation of cinema. USA: Havard University, 1991.
CARMONA, Ramón. Cómo se comenta um texto fílmico. Madrid: Cátedra, 2002.
CERQUEIRA, Leonardo Campos. Como e por que sou crítico de cinema. Vento Leste: Salvador, 2016.
CUNHA, T. C. Argumentação e crítica. Coimbra: Ed. Minerva Coimbra, 2004.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
EAGLETON, Terry. A função da crítica. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
PUCHEU, Alberto. Uma tese sobre a crítica literária brasileira. In: O contemporâneo na crítica literária / Susan Scramin (org). São Paulo: Iluminuras, 2012.
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